Chegámos da escola, já eram seis da tarde
faltavam os banhos e o jantar, mas o Miguel tinha tanta vontade de brincar, que
resolvi adiantar o jantar e disse-lhe que podia ir brincar um bocadinho.
A irmã foi com o pai à Natação, o Miguel este
ano optou só pelo Taewkondo e nós concordámos. Por isso, à Terça-feira o Miguel
vem comigo para casa e a irmã vai nadar com o pai.

A primeira sensação foi estranha, um misto de
espanto com preocupação. “Será normal? Porque será que brinca com bonecas? É
suposto os meninos brincarem com bonecas?”
Depois, numa mistura de espanto e até
vergonha, resolvi sair dali e não lhe dizer nada. O Miguel ficou a brincar e eu
sentei- -me na sala, pensativa. Queria
partilhar com alguém... Mas... E se não fosse suposto? E se mais nenhum menino
brincasse com...bonecas? E se contasse à educadora e não fosse suposto? Uma
catástrofe instalou-se de repente. Chegou a irmã e o pai do Miguel. A irmã
correu para o quarto e o pai veio ter comigo, deu-me um beijo e abraçou-me como
habitualmente.
- Que se passa? - perguntou de imediato. - O
que aconteceu? Contei-lhe, sem conseguir disfarçar a surpresa e espanto mas em
simultâneo numa tentativa de ver alguma normalidade na situação. O pai do
Miguel riu-se. Riu-se da situação e disse-me: - É normal. Claro que é. Eu
brinquei com as bonecas da minha irmã e das minhas primas, ainda por cima era o
único rapaz. Como o Miguel, também o pai partilhava quarto com a minha irmã e
no Verão, juntava-se a família toda, e era o único primo. Só meninas que
brincavam quase sempre com bonecas e às cozinhas.
- A sério? - perguntei, admirada. E o pai do
Miguel acenou afirmativamente, com o sorriso sempre tranquilo e ainda
acrescentou: E também havia carros e construções e especialmente a minha prima
Manuela, gostava muito de brincar com as construções e às corridas. E assim, lá
em casa, partilhavam-se brinquedos.
- E na escola? - perguntei eu curiosa.
- Na escola, lembro-me de perceber que não era
assim e que os meus colegas não iam perceber, mas às vezes quando iam lá a casa
e como os brinquedos estavam todos juntos, um ou outro brincava às cozinhas,
como se tendo os brinquedos todos no mesmo quarto, trouxesse maior
tranquilidade e menos vergonha a brincar com aquilo que se dizia ser de
“menina”.
Aquela conversa fez-me pensar. Afinal a minha
primeira reacção foi de algum embaraço e preocupação, mas realmente qual era o
problema? O Miguel era um miúdo engraçado, bem adaptado, com facilidade em
fazer amigos, com um mundo imaginário engraçado e uma curiosidade que lhe dava
a possibilidade de aprender muita coisa.
Resolvi ler um bocadinho sobre o tema, os
prós, os contras, se os há, porque se define brinquedos para meninas e para
meninos. E de facto, percebi que sem saber, pus à disposição dos meus filhos a
possibilidade de escolha, a liberdade de optarem e de preencherem o seu mundo
imaginário e de criatividade, com diferentes possibilidades.
Percebi que há de facto diferenças no tempo de desenvolvimento de algumas
áreas do cérebro entre géneros, que podem ter alguma influência no gosto por
brinquedos: as meninas tendem a desenvolver primeiro as áreas ligadas à
linguagem e aos afectos, pelo que apresentam maior facilidade com relações
sociais e têm um maior gosto por expressões faciais dos bonecos. Os meninos parecem ter desenvolvidas mais precocemente, as áreas do
lado direito do cérebro, ligadas às questões visuais, por isso, utilizam o
brinquedo como ferramenta, para montar, empilhar, organizar e usar conceitos
lógicos.
No entanto, esta influência biológica não é a
única responsável pela possível escolha de brinquedos. A história, a cultura
levou a esta grande diferença entre brinquedos para meninos e para meninas.
Actualmente, tanto eu como o pai do Miguel trabalhamos, dividimos tarefas,
tratamos dos nossos filhos. Antigamente, o papel de cuidadora era
essencialmente da mulher, o homem trabalhava e a mulher ficava em casa a tratar
dos filhos e das tarefas domésticas. Hoje sabemos que em grande parte das
famílias, com as mudanças na sociedade, a alteração do papel da mulher, algumas
mudanças económicas e sociais, não é assim. Como tal, experimentar o jogo
simbólico de cuidar de um “bebé”, prestar cuidados, alimentá-lo, ou por
exemplo, cozinhar, são tarefas de desenvolvimento importantes independentemente
do género. Acima de tudo isto, experimentar diferentes papéis, vestir
personagens diferentes, ter acesso a diferentes brincadeiras, possibilita o desenvolvimento
da imaginação, as competências sociais e a construção da identidade.
Foi assim, com a ajuda do pai do Miguel, com
algumas leituras e o questionar dos meus próprios pensamentos e sentimentos, que
percebi a importância de possibilitar aos meus dois filhos a escolha das
brincadeiras e dos brinquedos (vá, os que conseguimos dar e sempre com conta,
peso e medida), tentando condicioná-los o menos possível. Acima de tudo
consegui perceber tudo isto, com a ajuda do Miguel, o meu filho, que felizmente
na sua casa se sente bem e confortável para construir o seu mundo imaginário,
onde somos quem queremos ser, para um dia sermos o que é possível e nos faz
sentir bem.
Rita Castanheira Alves
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