quinta-feira, 2 de outubro de 2014

O meu filho brinca com bonecas! Será normal?


Chegámos da escola, já eram seis da tarde faltavam os banhos e o jantar, mas o Miguel tinha tanta vontade de brincar, que resolvi adiantar o jantar e disse-lhe que podia ir brincar um bocadinho.
A irmã foi com o pai à Natação, o Miguel este ano optou só pelo Taewkondo e nós concordámos. Por isso, à Terça-feira o Miguel vem comigo para casa e a irmã vai nadar com o pai.
Fui para a cozinha e o Miguel foi para o quarto. Distraí-me com o jantar e passado algum tempo, não sei precisar, mas passou meia hora, quarenta minutos e não ouvia o Miguel a fazer os seus “bum, beeehhhh...”, só silêncio. Fui espreitar. Devagarinho, percorri o corredor e vi que a porta do quarto dele, que partilha com a irmã, estava encostada. Estranhei e fiquei até um bocadinho preocupada: “Que estará ele a preparar desta vez?”, pensei.  Lembrei-me daquela vez em que queria voar: construiu umas asas e em cima do banco estava pronto para se atirar, ou da outra vez que queria construir umas escadas de lego e subi-las. Encostei-me à porta e abri-a ligeiramente, de modo a conseguir espreitar. Lá estava o Miguel, a embalar a Francisca, a boneca que a irmã brinca como se de um bebé se tratasse. E o Miguel embalava a Francisca, enrolada numa mantinha, fazia-lhe festinhas na testa e cantava uma canção de embalar, muito baixinho. Vi que à volta estava montada a cadeirinha das refeições da boneca Francisca e o carrinho de passear mesmo ao lado. Foi nesse dia que percebi que o Miguel brincava com bonecas!
A primeira sensação foi estranha, um misto de espanto com preocupação. “Será normal? Porque será que brinca com bonecas? É suposto os meninos brincarem com bonecas?”
Depois, numa mistura de espanto e até vergonha, resolvi sair dali e não lhe dizer nada. O Miguel ficou a brincar e eu sentei-   -me na sala, pensativa. Queria partilhar com alguém... Mas... E se não fosse suposto? E se mais nenhum menino brincasse com...bonecas? E se contasse à educadora e não fosse suposto? Uma catástrofe instalou-se de repente. Chegou a irmã e o pai do Miguel. A irmã correu para o quarto e o pai veio ter comigo, deu-me um beijo e abraçou-me como habitualmente.
- Que se passa? - perguntou de imediato. - O que aconteceu? Contei-lhe, sem conseguir disfarçar a surpresa e espanto mas em simultâneo numa tentativa de ver alguma normalidade na situação. O pai do Miguel riu-se. Riu-se da situação e disse-me: - É normal. Claro que é. Eu brinquei com as bonecas da minha irmã e das minhas primas, ainda por cima era o único rapaz. Como o Miguel, também o pai partilhava quarto com a minha irmã e no Verão, juntava-se a família toda, e era o único primo. Só meninas que brincavam quase sempre com bonecas e às cozinhas.
- A sério? - perguntei, admirada. E o pai do Miguel acenou afirmativamente, com o sorriso sempre tranquilo e ainda acrescentou: E também havia carros e construções e especialmente a minha prima Manuela, gostava muito de brincar com as construções e às corridas. E assim, lá em casa, partilhavam-se brinquedos.
- E na escola? - perguntei eu curiosa.
- Na escola, lembro-me de perceber que não era assim e que os meus colegas não iam perceber, mas às vezes quando iam lá a casa e como os brinquedos estavam todos juntos, um ou outro brincava às cozinhas, como se tendo os brinquedos todos no mesmo quarto, trouxesse maior tranquilidade e menos vergonha a brincar com aquilo que se dizia ser de “menina”.
Aquela conversa fez-me pensar. Afinal a minha primeira reacção foi de algum embaraço e preocupação, mas realmente qual era o problema? O Miguel era um miúdo engraçado, bem adaptado, com facilidade em fazer amigos, com um mundo imaginário engraçado e uma curiosidade que lhe dava a possibilidade de aprender muita coisa.
Resolvi ler um bocadinho sobre o tema, os prós, os contras, se os há, porque se define brinquedos para meninas e para meninos. E de facto, percebi que sem saber, pus à disposição dos meus filhos a possibilidade de escolha, a liberdade de optarem e de preencherem o seu mundo imaginário e de criatividade, com diferentes possibilidades.
Percebi que há de facto diferenças no tempo de desenvolvimento de algumas áreas do cérebro entre géneros, que podem ter alguma influência no gosto por brinquedos: as meninas tendem a desenvolver primeiro as áreas ligadas à linguagem e aos afectos, pelo que apresentam maior facilidade com relações sociais e têm um maior gosto por expressões faciais dos bonecos. Os meninos parecem ter desenvolvidas mais precocemente, as áreas do lado direito do cérebro, ligadas às questões visuais, por isso, utilizam o brinquedo como ferramenta, para montar, empilhar, organizar e usar conceitos lógicos.
No entanto, esta influência biológica não é a única responsável pela possível escolha de brinquedos. A história, a cultura levou a esta grande diferença entre brinquedos para meninos e para meninas. Actualmente, tanto eu como o pai do Miguel trabalhamos, dividimos tarefas, tratamos dos nossos filhos. Antigamente, o papel de cuidadora era essencialmente da mulher, o homem trabalhava e a mulher ficava em casa a tratar dos filhos e das tarefas domésticas. Hoje sabemos que em grande parte das famílias, com as mudanças na sociedade, a alteração do papel da mulher, algumas mudanças económicas e sociais, não é assim. Como tal, experimentar o jogo simbólico de cuidar de um “bebé”, prestar cuidados, alimentá-lo, ou por exemplo, cozinhar, são tarefas de desenvolvimento importantes independentemente do género. Acima de tudo isto, experimentar diferentes papéis, vestir personagens diferentes, ter acesso a diferentes brincadeiras, possibilita o desenvolvimento da imaginação, as competências sociais e a construção da identidade.

Foi assim, com a ajuda do pai do Miguel, com algumas leituras e o questionar dos meus próprios pensamentos e sentimentos, que percebi a importância de possibilitar aos meus dois filhos a escolha das brincadeiras e dos brinquedos (vá, os que conseguimos dar e sempre com conta, peso e medida), tentando condicioná-los o menos possível. Acima de tudo consegui perceber tudo isto, com a ajuda do Miguel, o meu filho, que felizmente na sua casa se sente bem e confortável para construir o seu mundo imaginário, onde somos quem queremos ser, para um dia sermos o que é possível e nos faz sentir bem.

Rita Castanheira Alves

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